Enquanto a conversa prosseguia do lado de fora da Grande Pedra, Percilio adentrava sua caverna no terceiro andar, apenas Anita o acompanhava, pois Sibila encontrara Celeste pelo caminho e foi brincar com a amiga. Pai e filha se refrescaram tomando água e se alimentaram comendo um pedaço de pão com geleia de amoras feita por Mirla. Assim que terminaram a breve refeição. Anita perguntou:
– Pai, porque o moço que veio nos visitar hoje tem uma coroa de luz sobre sua cabeça?
Percilio ficou confuso com a pergunta, já tinha ouvido falar sobre isso através de Claudius, mas nunca tinha visto, nem tão pouco conhecia alguém que tivesse afirmado tal fato.
Pensou um instante e respondeu:
– Filha, eu não sei, você tem certeza que é isso mesmo que viu?
– Sim papai, ela é linda e tem todas as cores do arco íris. Respondeu a menina inocentemente.
Percilio pediu que não dissesse nada a ninguém a respeito do que tinha visto que ele iria descobrir o que era e depois explicava para ela. A tempos o rapaz estava questionando muitos acontecimentos que ocorriam na Grande Pedra e em especial na sua vida. A alguns dias ele teve a impressão que viu um vulto acompanhando Mirtes, enquanto ela se dirigia ao riacho para buscar água. Desde que se mudou para a caverna de Joninho, isto a quase seis anos, muitos acontecimentos o deixaram intrigado, mas tentava não comentar com ninguém para evitar maiores especulações a respeito, pois a totalidade dos moradores da Comunidade eram contrários que alguém ocupasse novamente aquela caverna, que diziam ser assombrada. Como ele não comentava sobre estes fatos, com o tempo, todos se esqueceram do assunto, inclusive Mirtes, que a cada dia se mostrava mais alheia a tudo que a cercava. As crises de esquizofrenia desapareceram por completo desde que as meninas nasceram, mas por outro lado, a falta de consideração para com o marido que ela dizia ser um fraco, só fazia se acentuar. Nada era capaz de anular o mau humor e o pessimismo que rondava, onde quer que ela estivesse.
Pai e filha se ocuparam de dar uma arrumada na casa, como faziam todos os dias, a sinergia que existia entre Percilio e Anita era algo difícil de explicar, quando os dois estavam na Grande Pedra, era só procurar um que achava o outro, não se afastavam. Assim que terminaram foram ter com o grupo que ainda permanecia reunido conversando animadamente.
Percilio, segurando na mão da filha, sentou-se ao lado do irmão Cirilo, que só ouvia, sem interferir no rumo da prosa. Percebendo que o velho nativo queria dizer alguma coisa, antecipou-se.
– Esta noite, você dorme na Grande Pedra, amanhã bem cedo, vou cuidar de suas pernas, pelo que vi, precisa de um preparado que aumente a circulação do sangue, é isso que está dificultando sua locomoção.
Hipólito desdobrou-se em agradecimentos. Concluiu:
– Eu não sei por que, mas me sinto em casa aqui!
Quando a noite deu sinais de se anunciar, o grupo começou a se dispersar, e foi aí, que Cirilo chamou o irmão mais velho, dizendo:
– Percilio, tenho um assunto muito sério a tratar com você, leve Anita para sua caverna e volte que estou te esperando.
Não era comum este tipo de abordagem, aliás, os irmãos mal se falavam, tal era o comprometimento com o trabalho e outros afazeres, em especial, para Percilio, somando-se o atendimento àqueles que o procuravam diariamente. No caminho para colocar a filha para dormir, o rapaz pensou sobre qual assunto o irmão tinha tanta urgência em lhe falar. Pensou em alguma doença inesperada ou mesmo que se tratasse de Jonas, seu pai, que ultimamente vinha demonstrando episódios de ausência da realidade cada vez mais frequentes.
Ao adentrar sua caverna, viu Mirtes chorando convulsivamente abraçada a Sibila. Percilio perguntou:
– O que aconteceu?
Mirtes levantou lentamente a cabeça e disse:
– Foi Lêntulo, eu estava passeando à beira mar e ele me abordou, dizendo:
– Você é uma imprestável, suas filhas precisam de cuidados e você aqui, tomando a fresca do mar?
Parou soluçando, a seguir completou:
– Não dou o direito a seu irmão, nem a ninguém de me tratar desta maneira, da minha vida cuido eu!
Percilio se espantou com a colocação da esposa, pois nunca, jamais, ninguém tinha dito o quer que seja sobre o comportamento de Mirtes, é certo que Lêntulo tinha razão, mas isso não lhe dava o direito de tratá-la com tanta grosseria.
– Exijo que tome satisfações com ele! Exclamou Mirtes, com tanta rudeza que Anita se assustou e começou a chorar, dizendo:
– Papai, por favor, não brigue com tio Lêntulo, ele só está muito triste.
Mirtes olhou para a filha, como que querendo repreendê-la, mas desistiu com a pronta resposta do marido:
– Não se preocupe filha, papai apenas vai conversar com ele.
Em questão de segundos o pai já estava do lado de fora da Grande Pedra, onde Cirilo o aguardava impaciente. Assim que o viu disse:
– Mano, como você demorou, eu já estava desistindo de falar com você hoje.
Percilio, como não compreendendo, disse:
– É melhor mesmo, agora estou com muita pressa, preciso muito falar com Lêntulo.
Cirilo sentou-se novamente, completando:
-É exatamente sobre ele que gostaria de conversar com você.
Um turbilhão de pensamentos invadiu a mente de Percilio que concluiu em uma fração de segundos que Mirtes estava mentindo, pois com certeza Lêntulo havia se queixado com Cirilo de alguma provocação que sua esposa haveria de ter lançado sobre seu irmão caçula.
Como que atingido por um raio, o pai de Anita sentou-se ao lado do irmão e falou:
– Pode dizer, sou todo ouvidos. Cirilo prosseguiu.
– Desde que mamãe morreu venho notado que Lêntulo está cada vez mais distante de todos nós, temo que esteja se tornando um eremita que mais dia menos dia ganhará o mundo sem olhar para trás.
Percilio hesitou em concordar mas sabia que o irmão tinha toda razão, então não era sobre o comportamento de Mirtes que Cirilo queria conversar. Disse:
– Irmão, você tem mais alguma coisa a me dizer sobre o comportamento de Lêntulo?
– Sim, e é muito grave!
– Então diga logo que já está me deixando agoniado. Reclamou o irmão mais velho.
– Outro dia eu o peguei falando sozinho, parecia estar sendo conduzido por uma energia estranha, ele não me atendeu quando o chamei, apenas me olhou como se não fosse ele.
Percilio já tinha ouvido falar de outras pessoas que foram obsediadas por espíritos malignos mas nunca imaginou que isto poderia atingir alguém tão próximo, o simples fato de ter certeza que ele e sua família eram cumpridores de seus deveres, na sua opinião, já os mantinham isentos de tal interferência. Por outro lado, Cirilo necessitava de mais esclarecimentos, pois para ele, isto era o prenuncio de um fim trágico.
continuação….