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Os dias se sucediam sem maiores acontecimentos, até que uma tarde, voltando da pescaria, com Múrcio e Tibério, percebemos um grande tumulto no Mercado. Vi Catarina correndo, chorando em nossa direção, ela me abraçou e disse :
– Ahimon está morto!
Foi um choque, Múrcio de imediato perdeu os sentidos, enquanto Tibério e Teodoro o socorriam, eu tentava acalmar minha irmã. Pessoas vinham de todas as direções, logo uma multidão se formou, nos disseram que Ahimon caiu de repente, após soltar um grito horrível – estava atendendo um freguês. Quando foram socorrê-lo, perceberam que não mais respirava, seu corpo jazia na murta velado por companheiros de trabalho.
Eu só pensava em tirar Catarina dali, abracei-a e a conduzi à casa de Menéas, deitei-a na esteira e fui preparar uma infusão de ervas calmantes, ela estava em estado de choque – não oferecia resistência, não mais chorava, nem pronunciava nenhuma palavra.
Enquanto aguardava a água ferver, percebi a presença de Uruãn, como sempre ocorria quando atendia os doentes naquela casa, mas desta vez o vi claramente em minha frente, começou dizendo :
– Mais uma Determinação se cumpre, Ahimon precisava partir, pois Catarina ainda tem muitas missões a cumprir sozinha. Seu marido tinha muitos débitos decorrentes de atitudes insanas praticadas em vidas passadas, sua irmã o auxiliou muito, mas agora já faz tarde, seu reencarne já está preparado, ele terá que aplicar tudo que aprendeu durante estes anos que compartilhou à vida com Catarina, Josias e Rita. Cuide dela com muito carinho, ela se recuperará rápido, pois já sabia de tudo que teria que enfrentar.
A água ferveu, coloquei-a sobre as folhas, o aroma desprendido se espalhou por todos os cômodos, levei-o até Catarina que permanecia inerte, sem esboçar nenhuma reação, apesar dos olhos permanentemente abertos.
Sentei-me ao seu lado e falei pausadamente :
– Catarina, Ahimon precisava partir, o Grande Deus determinou, nada poderia ser feito porque ele deverá prosseguir suas tarefas em outras terras.
Ela se mexeu lentamente, pousou seu olhar sobre o meu e falou:
– Aimanon, eu já sabia disso a muito tempo, mas sempre tentei duvidar, todas as noites orava pedindo complacência ao Pai, mas vejo que foi inútil. Acho até que este segredo abalou minha concordância aos desígnios do Grande Deus, pois se nada podemos fazer para alterá-los, porque saber? Porque deixar de viver tranquilo, se o que sabemos nos leva a ficar angustiados e não aproveitar o tempo disponível para convivermos e vivenciarmos a tranquilidade e o amor? Foi isso que aconteceu, soube de sua morte a dois anos e desde então minha vida mudou, não tive mais vontade de ter filhos e nem de cuidar dos que já tinha, me tornei triste e arredia. Este segredo me consumiu, assim como outros que ainda guardo.
Pensei um pouco, respondi com toda sinceridade, mas visivelmente inspirado por Uruãn:
– Irmã, o que enxergamos é nada perante o infinito que se descortina diante do Pai. Nossa limitada visão nos leva a distorcer o verdadeiro motivo de todos os acontecimentos. Quem te fez concluir que o melhor para Ahimon seria prosseguir nesta terra em sua companhia e de seus filhos? Com certeza sua visão distorcida por sentimentos de posse e egoísmo. Esta é a verdade. O fato de saber com antecedência é que por algum motivo que desconheço, eu, você, Artur, Suzana, Claudia, Armanide e Tia Adelane somos médiuns e são eles que trazem as Determinações do Grande Deus aos outros homens. Saber de acontecimentos futuros, não pode trazer dor, nem sofrimento, porque não há como alterá-los. Deve-se aceitar com serenidade, guardar segredo às vezes não é necessário, mas isto não faz diferença, o intuito é – aumentar a fé do médium na capacidade do Grande Sábio de ver tudo, saber tudo, conduzir tudo. O médium de posse de qualquer informação, seja de que tipo for, deve considerá-la como uma alavanca para solidificar a certeza no amor do Pai.
Catarina se colocou atenta as minhas explicações. Sorveu lentamente o chá e parecendo não ter conseguido assimilar tudo, falou:
– Mas tudo que sei não pode ser dito a ninguém, sob o risco de me acusarem de estar desejando o mal para os outros, e se isso é algo muito ruim e afeta inúmeras pessoas?
Eu, já sabendo ao que se referia prossegui serenamente:
Com certeza Ahimon não sabia o que ia lhe acontecer, mas você de posse desta informação poderia tê-lo preparado durante estes dois anos sem que ele soubesse do que lhe aguardava.
– Como assim? O que poderia ter dito a ele que o preparasse para a morte?
Olhei-a com um carinho imenso, sabia que esta conversa seria a primeira de muitas que teríamos antes da minha partida. Menéas havia me dito em nosso último encontro, no dia que revi Minélus, que um médium sem entendimento é como um cavalo selvagem e que como última missão eu teria que esclarecer todos os mistérios que acompanham a vida de cada um deles e aí me disse uma frase que no dia não entendi:
– No dia que Catarina for até minha casa, diga que ela saberá de tudo, mas isto deverá ser revelado a todos os médiuns da família juntos: Suzana, Armanide, Claudia, Adelane e os três filhos mais velhos de Tarcila. Nos dias que conversar com eles, Minélus, Elias e Nuno também estarão presentes.
Voltando a realidade, respondi:
– Catarina, imagine que a vida é uma só, como se fossem dias intercalados por noites tranquilas com muitas estrelas no céu e lua cheia. Se você aprender muito durante o dia, fizer boas ações, orar; quando a noite chega você está feliz com a consciência tranquila e o coração em paz, então você dorme, descansa e acorda restabelecida para cumprir novas obrigações, mas tudo que aprendeu nos dias anteriores jamais será perdido, isto se acumula, te levando a ter mais e mais sabedoria.
– Nos dois anos que antecederam a morte de Ahimon – prossegui – você poderia ter lhe ensinado mais sobre os mistérios da vida de um médium, por exemplo, sem alarmá-lo quanto ao que estava por vir. Ele não esqueceria mais, guardaria este conhecimento para quando retornasse a viver, ou seja, quando acordasse para um novo dia, não teria nenhuma surpresa quando se deparasse com um médium, mesmo sem se recordar quem o ensinou. O conhecimento surgiria espontaneamente.
Catarina, me pareceu agora ter encontrado o fio da meada, mas mesmo assim senti que “aquele” grande segredo com relação a mim a incomodava.
– Aimanon, preciso conversar mais com você, mas terá que ser outro dia.
Respondi, concordando plenamente.
– Sim, agora temos que ir até a casa de Lucia e Múrcio conversar com seus filhos.
Nos últimos anos, os filhos de Catarina praticamente moravam com os avós. Minha irmã não se incomodava, dizia que Lucia, sua sogra, era muito sozinha, pois só tinha Ahimon como filho, as crianças gostavam da casa dos avós que era praticamente em frente ao rio. Algumas vezes eu a havia alertado sobre a falta de embasamento para uma mãe agir desta maneira, mas no futuro descobri as razões para esta conduta anormal.
Saímos, andando lado a lado, falei para Catarina que marcaríamos esta conversa em uma ocasião quando ela já estivesse mais tranquila.
Passamos no Mercado e soubemos que o corpo já estava no Templo sendo preparado para ser velado. Na casa de Múrcio, a tristeza era contundente, nunca vi um pai e uma mãe tão desesperados com a morte de um filho. Lucia, quando viu Catarina, exclamou sem forças para levantar-se:
– Filha, os Deuses o levaram, será que foi um castigo pelo que fiz aos meus outros filhos?
Não entendi a afirmação, mas com certeza Catarina sim, ela sentou ao seu lado, segurou suas mãos, dizendo carinhosa:
– Vovó, não pense assim, Ahimon partiu porque já fez tudo que tinha que ter feito, cuidou de vocês, cuidou de mim e deu o maior presente que a senhora poderia ganhar: Josias e Rita, eles são a prova concreta que os Deuses não estão zangados.
Lucia a abraçou com tanto amor, que não me recordo de um dia ter visto mamãe ter feito este gesto.
Múrcio estava no quarto, estirado na cama, como que seu corpo não tivesse vida. Me aproximei de seu leito e disse:
– Força amigo! Sei que perder um filho é a dor mais terrível que um homem pode suportar, mas creia, ele agora está muito melhor onde se encontra do que nós aqui.
Ele me olhou e declarou parecendo não ter completo domínio da razão:
– Aimanon, acredito apenas que ele se foi porque nunca mais o verei, além disso não creio em absolutamente mais nada, nem na ira dos Deuses, como Lucia, para mim eles simplesmente não existem e muito menos algum lugar além deste que enxergamos, meu filho será cremado e suas cinzas adubarão a terra – mais nada.
– Múrcio, respeito inteiramente sua opinião, mas gostaria de te dizer apenas uma coisa: observe as águas dos rios e dos mares, imagine que a luz do sol está penetrando as águas límpidas, mas em contínuo movimento, atingindo os peixes que nadam despreocupadamente. Tente pensar: As águas não transbordam, porque? Os peixes não de afogam, porque? O sol suspenso no céu azul transpassa as águas e ilumina os peixes, porque? De onde vem esta encantadora harmonia? Pense nisso, que quando tudo isso passar, conversaremos e compreenderá melhor o que aconteceu com Ahimon.
continuação…