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Entramos novamente e Múrcio me relatou o que estava acontecendo com Minélus, que apesar de eu já ter ouvido alguns comentários entre minhas tias, desconhecia os detalhes. O pescador me falou que ele agora praticava pequenos furtos em companhia de elementos da mais baixa estirpe moral, desocupados de todas as categorias. Dizia para quem quisesse ouvir que a culpa de sua infelicidade era de Suzana e Menéas.
Pediu que eu tivesse cuidado, pois achava muito estranho Menéas ter aparecido morto na beira do rio e na noite seguinte sua casa ter sido invadida. Apesar que este fato deveria ser mantido em segredo pois Múrcio havia prometido a Tiburcio que nada diria a ninguém. Pedi que se tranquilizasse pois nada diria, à não ser para Suzana que precisava ser alertada. Nos despedimos, fiquei só, tentando colocar ordem nos meus pensamentos.
Não conseguia compreender como alguém pudesse direcionar sua vida desta maneira, apenas porque Suzana exerceu seu direito de se negar a se casar com ele, neste caso, Claudia teria muitos desafetos, pois só dos que me recordo, ela recusou cinco pretendentes. Que direito tem ele, de ousar imaginar que seus atos vis são conseqüências da atitude de Suzana de exercer seu direito de recusá-lo?
Percebi que quando pensava nisso, um sentimento que desconhecia me invadiu: o ódio. Ele me fazia suar frio, contrair todos os meus músculos e desejar que Minélus também aparecesse morto na beira do rio. Foi uma fração de segundos, mas senti que fui contaminado, pois tive vontade de sair correndo, esquecer tudo que Menéas havia me pedido, correr para casa, proteger Suzana e aguardar o momento de acertar as contas com meu primo, por ousar dizer a todos que minha esposa era responsável por sua insensatez.
Confesso que gostei da sensação de me vingar, mas ao mesmo tempo algo me dizia:
– Se acalme e reflita, não tome um acontecimento isolado como motivo para sua conduta, enxergue o todo, pois é ele que traz o verdadeiro caminho.
Fechei a casa de Menéas cuidadosamente e voltei para casa, caminhei lentamente, me sentindo um velho de oitenta anos, apesar de ainda não ter completado dezenove.
Armanide dormia tranquilamente, Suzana estava no quarto lendo, sentei-me ao seu lado e contei tudo que havia ocorrido naquele dia, apenas omiti o fato do saco que tinha sido jogado ao mar e não se molhou, aquele episódio era para mim incompreensível e achei melhor esquecer o assunto. Falei que tomasse cuidado com Minélus pois ele dizia a todos que ela tinha culpa do seu descaminho. Suzana me olhou preocupada e disse:
– Eu já sabia disso, mamãe e Tia Adelane já haviam me alertado, eu só não falei para você por medo de que fosse tirar satisfações com ele.
– Suzana, é o que gostaria, mas não acho que seja o caminho correto, afinal ele tem o direito de achar o que bem desejar, só que isto o impede de ser um homem de bem, mas são escolhas que só ele sabe o porque se agarrou nelas.
Suzana me abraçou aos prantos, dizendo que tinha medo que ele e Tia Croele lançassem alguma maldição sobre nossa família, pois quando Tia Croele esteve em nossa casa na semana passada enquanto eu trabalhava, ela disse que Armanide lhe parecia muito débil e para que eu não me descuidasse pois provavelmente carregava alguma doença oculta. Ao ouvir isto, dei um salto e não me contive, bradei aos prantos:
– Grande Deus, nos auxilie, como pode ser isso? Alguém entrar em minha casa e proferir tamanho descalabro?
Suzana se levantou e me abraçou, choramos juntos, lamentando por existirem pessoas tão vis que ousam desejar o mal a uma criatura tão inocente.
Pedi que Suzana se sentasse e contei o episódio que ocorreu com Tia Croele no dia que Armanide nasceu, pedi que não se preocupasse, pois estávamos sendo protegidos pelo Grande Deus e seus servidores. Só neste momento contei sobre o saco que não se molhou, Suzana me fitou com espanto e falou:
– Aimanon, estamos sim sendo protegidos, este é mais um motivo para acreditarmos piamente nesta proteção. Isto é algo tão fantástico que só pode ser fruto de uma energia tão poderosa que está acima de qualquer coisa que encontramos sobre esta terra. Não se preocupe, vou esquecer o que Tia Croele me disse, toda noite pedirei ao Grande Deus que faça com que ela e Minélus enxerguem que estão totalmente errados em desejar o mal para outras pessoas.
Eu sempre me surpreendia com o equilíbrio e bom senso de minha esposa, mas desta vez ela se mostrava muito mais forte que eu. Suzana exteriorizava algo que às vezes me sentia incapaz de sentir : compreender a fraqueza alheia e perdoar, sem ao menos levantar uma palavra para julgar a atitude tomada. A partir deste dia, aprendi algo que me acompanhou em minhas vidas futuras, sempre me alertando sobre o poder do ódio gerado pela falta de discernimento com a compreensão das atitudes do próximo. Tia Croele e Minélus se colocavam como detentores da verdade sem maiores considerações. O que ocorreu, apesar de ser algo corriqueiro para os olhos normais, se tornou para eles a alavanca que trouxe algo tão maléfico à ponto de cegá-los e não permitir que a razão se sobressaísse na luta contra a mágoa irreal.
Nesta noite, eu e Suzana oramos juntos ao Grande Deus, pedindo proteção à nossa família e implorando que Tia Croele e Minélus encontrassem o caminho do discernimento que leva à felicidade. Suzana adormeceu nos meus braços. Armanide, ao nosso lado, parecia um anjo enviado pelo Grande Deus para nos proteger. No dia seguinte, caminhei para casa de Menéas com outra disposição. Sentia-me leve e tinha a sensação que me dirigia ao cumprimento de uma tarefa tão importante como colocar alimento sobre a mesa de minha família.
Ao entrar na pequena sala, vi Minélus estendido na esteira, imóvel, parecendo dormir profundamente. O primeiro impulso foi de acordá-lo aos pontapés, mas me contive, após refletir rapidamente. Abaixei-me, toquei suas mãos e percebi que estavam geladas, me afastei apavorado, corri ao encontro dos pescadores que permaneciam à margem do rio e retornei acompanhando de Múrcio e Tibério. Ele estava realmente morto. Supliquei aos prantos :
– Grande Deus, como pode ser isto ? Ele tem apenas vinte anos e mal iniciou sua vida.
Múrcio, com sua amizade extrema me consolou dizendo:
– Aimanon, seu primo nunca se preocupou em cuidar de seu corpo, sei que consumia chás alucinógenos e passava grande parte do tempo ao relento, apesar de ter casa e família, isto é apenas consequência natural desta vida insana e destruidora.
Eu sabia disso, mas ele era uma pessoa como todas as outras, tinha seus sonhos e vontade de ser um cidadão do bem. Não conseguia compreender como alguém pudesse seguir um caminho tão oposto à execução destes ideais.
Múrcio pediu que Tibério fosse avisar a família, mas assim que saiu, Tia Croele e Tio Cirilo chegaram acompanhados de Tiburcio. Ele nos contou que naquela noite tinham ido à casa de Menéas para procurar folhas de chá alucinógeno, acompanhados de Nilo, Constantino e Remo. Três desocupados assim como ele e meu primo. Acharam folhas encima de um armário de madeira nos fundos da casa, aparentemente era o que procuravam, prepararam o chá, meu primo foi o primeiro a beber, imediatamente se sentiu mal. O colocaram na esteira, ele teve algumas convulsões onde se debatia e falava coisas desconexas como:
– Menéas, você conseguiu me separar de Suzana, te perseguirei para sempre.
continuação…